“Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor.” (Mateus 24:42).

Vigilância Ambiental: Epidemiologia da Leishimaniose










Caros leitores, este é um texto de um grande mestre em Leishmaniose, Dr Paulo Sabroza, cujo tive o prazer de conhecer no ano de 2009 em uma visita que nos fez ao Paraná, nos acompanhando ao Municipio de Mariluz em um grande assentamento que sofreu um surto por este agravo.


A distribuição e a ocorrência das leishmanioses devem ser entendidas separadamente: de um lado, as leishmanioses tegumentares, de outro, a visceral.

Epidemiologia das leishmanioses tegumentares


A incidência das leishmanioses tegumentares é cíclica, podendo haver um número alto de registros em um ano, baixo no outro e alto novamente no seguinte. Na última década, o registro de casos confirmados tem variado entre 30 mil e 40 mil por ano, no Brasil. Segundo dados da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, o maior coeficiente de detecção da doença se dá na Região Norte, onde ela atinge quase cem habitantes para cada cem mil. Em seguida, há as regiões Centro-Oeste, com 41,85, e Nordeste, com 26,50 casos para cada cem mil pessoas.
Apesar dos números acima, a letalidade das leishmanioses tegumentares é inexpressiva, ocorrendo somente em casos esporádicos, como quando surgem infecções secundárias, ou quando ocorrem problemas na medicação do paciente. Muitos casos, inclusive, não são sequer registrados, ou porque o infectado não desenvolve a doença (tornando-se apenas um portador), ou porque o enfermo simplesmente não procura um serviço médico.
Os ciclos no número de ocorrências explicam-se por fatores sociais e climáticos. Por exemplo, tais registros podem ser influenciados, de um lado, pelo desmatamento ou período de seca, por outro por algum processo de ocupação desordenada. Enfim, cada região apresentará características próprias, o que colabora para que os padrões de transmissão das leishmanioses tegumentares sejam de definição complexa. Ainda assim, tais padrões podem ser descritos em três linhas gerais: a transmissão florestal, a rural e a urbana.
A transmissão florestal ocorre ao se penetrar nas matas. Por isso, ela atinge especialmente homens que se dedicam a profissões que exigem o contato silvestre, como a abertura de estradas, a coleta de produtos naturais, o garimpo, o turismo ecológico ou a extração de madeira. Os flebotomíneos envolvidos nesse primeiro padrão são essencialmente silvestres, assim como os animais que servem de reservatório para o agente causador (preguiças, tamanduás, gambás etc). Por isso, os casos por transmissão florestal concentram-se predominantemente na região Amazônica e no Centro-Oeste.
O mosaico formado por pequenas porções florestais e áreas de baixa densidade demográfica servirá de ambiente perfeito para a transmissão rural. Neste caso, há espécies de flebotomíneos adaptadas tanto às matas quanto às áreas próximas aos domicílios. A infecção pode ocorrer em casa ou até mesmo quando uma criança vai para escola e passa por um pequeno bosque. Áreas rurais de ocupação antiga, sobretudo em estados como Ceará, Minas Gerais e Paraná, servem como exemplo.
O padrão de transmissão urbana apresenta em dois aspectos: quando há o deslocamento do inseto transmissor das florestas para bairros próximos à mata, ou, simplesmente, pela ação de flebotomíneos adaptados a áreas arborizadas, periféricas à cidade. Um exemplo para o primeiro caso ocorre quando o perímetro urbano invade a floresta de modo desordenado. Ao ocorrer desmatamento nos limites urbanos para a construção de novas habitações, os animais silvestres das proximidades morrem ou fogem, o que deixa os flebotomíneos sem suas fontes alimentares naturais. Conseqüentemente, o inseto vai buscar nos animais domésticos e no homem o sangue necessário para a sua sobrevivência, levando consigo o protozoário. É o que acontece atualmente em Manaus, pois lá tem havido a devastação da floresta vizinha à cidade para a construção de novos bairros.
No segundo caso, o vetor transmissor da doença já está adaptado ao espaço próximo aos domicílios. Angra dos Reis e diversas localidades de Paraty, ao sul do Estado do Rio de Janeiro, são exemplos clássicos, onde as transmissões urbanas são mais comuns. A presença das leishmanioses tegumentares, porém, em bairros completamente urbanos é praticamente impossível. No máximo, ela pode ocorrer em bairros periféricos com presença de matas alteradas, como em Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro.
O combate à transmissão das leishmanioses tegumentares é difícil. O tratamento precoce dos casos ainda deve permanecer como prioridade do programa de controle desta endemia. Quanto às ações preventivas, é necessário haver uma adequação das atividades de controle às condições de cada local atingido pela doença. As pesquisas e a política de enfrentamento contra a enfermidade devem ser adaptadas para cada região, não existindo uma fórmula geral. Contudo, uma coisa é certa: o alastramento do mal está intimamente ligado ao desequilíbrio ambiental, tema que deve ser sempre tratado como prioridade.

Epidemiologia da leishmaniose visceral

De acordo com o epidemiologista Paulo Sabroza, da Fiocruz, a atual situação da leishmaniose visceral no Brasil é grave. O quadro da doença só não é mais sério, em termos de risco potencial de epidemias em centros urbanos, que o do dengue. Até o início dos anos 80, a leishmaniose visceral restringia-se a bolsões de miséria, localizados majoritariamente no Nordeste. Hoje já é realidade em capitais como Teresina, São Luís, Campo Grande, Palmas e Belo Horizonte. Agora, aproxima-se de outras metrópoles como Brasília e São Paulo. "A questão não é se vai chegar, e sim quando vai chegar", alerta.
Assim como nas tegumentares, a ocorrência da leishmaniose visceral é cíclica. De acordo com a SVS, mais de 70% dos casos ainda concentram-se no Nordeste. Em todo o país, entre cinco e dez mil indivíduos são atingidos anualmente, dos quais cerca de 10% não sobrevivem. Certamente, a mortalidade não seria tão alta se a doença fosse diagnosticada e tratada mais precocemente. No entanto, de acordo com Sabroza, além de seu início lento e mal definido (o que dificulta o diagnóstico), os serviços de saúde ainda não se encontram suficientemente mobilizados para enfrentá-la, havendo, portanto, escassez de informação sobre a moléstia.
Dois aspectos do processo de transmissão apresentam características que contribuem para a disseminação da leishmaniose visceral. O primeiro é o seu principal reservatório - o cão -, o segundo é o inseto responsável por 99% das infecções: a Lutzomyia longipalpis, ambos com hábitos urbanos. O cão é um animal essencialmente doméstico, completamente adaptado à vida junto ao homem e que inclusive se desloca com ele nas migrações. A L. longipalpis também já adequou sua sobrevivência ao que pesquisadores denominam de peridomicílio (as regiões ao redor das casas, como jardins, parques, bosques, hortas ou quintais). Além disso, até agora, não há vacina de eficácia comprovada e nem cura para a leishmaniose canina, de modo que a única alternativa é a eliminação do animal infectado - tanto como medida de controle da moléstia, quanto para evitar o seu sofrimento. No entanto, a população nem sempre se dispõe a eliminar seus bichos de estimação, o que mais uma vez ressalta a necessidade de um amplo trabalho de conscientização. Esporadicamente, os gatos também servem de reservatório para o protozoário.
Em virtude do desmatamento, da migração de populações e das mudanças sociais e ambientais ocorridas nas últimas décadas, a leishmaniose visceral, antes silvestre, tornou-se uma doença urbana - apesar de ainda existir em focos rurais. Chega a uma cidade, segue a malha rodoviária, infectando as populações de beira de estrada, até atingir a periferia da próxima cidade. Diferentemente das tegumentares, a visceral pode inclusive atingir bairros bem urbanizados e centrais.
Para sanar tal situação, urge que o problema da leishmaniose visceral seja encarado como de alta prioridade. Sabroza recomenda a completa integração entre profissionais de saúde do sistema privado e público, o envolvimento dos meios de comunicação em um movimento de conscientização, em conjunto com campanhas de esclarecimento e a conseqüente colaboração da população. A constituição de uma inteligência epidemiológica em locais endêmicos, diagnóstico e tratamento precoce e o diagnóstico e eliminação de cães infectados são outras medidas necessárias. Por fim, o controle da moléstia passa também por um controle vetorial, tema de trato extremamente complexo, exigindo a presença de profissionais especializados no assunto.

Fonte: Paulo Sabroza, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), da Fiocruz


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